quarta-feira, maio 23, 2012

As mortes insignificantes

Na saída do aeroporto há uma instalação. Como que uma sala fúnebre fresca, paredes e chão negros mate de iluminação quase invisível azul, rasgada por um traço incandescente de claridade. Marca uma fronteira perpendicular ao caminho e ciclos de água pulverizada caem sobre ela. Há ali uma impressão de limite e limpeza. Parece-me apropriado: sempre achei que o maior privilégio em viajar e ser estrangeiro por alguns dias, se liga a essa noção de uma vida que se suspende. Que morre só um bocadinho. Que deixa uma cama e uma secretária vazia. O que transforma estas mortes em insignificâncias agradáveis é o bilhete de regresso, a certeza de uma casa, a noção de temporário, de interrupção controlada. A identidade bem guardada numa carteira que de pouco ou nada vai servir nestes dias: carta de condução, passe de metro. Tudo inútil, mas ainda assim, garantia fundamental de que há uma vida a que vamos voltar. De qualquer forma, há justiça e sentido em construir um purgatório na fronteira entre o terminal e a gare. Eu aproveitei para trocar o rolo à maquina que ia no casaco e comer duas bolachas. O meu velório.

terça-feira, maio 08, 2012

As coisas do corpo

Demasiado internas para lhes conhecermos os contornos.
Demasiado ocultas para lhes saber as razões.
Ostensivas, as coisas do corpo exibem-se perfeitas. Segundos
em que cheguei a odiá-las. Estavam demasiado longe
dos lugares a que devíamos regressar quando eu envelhecesse.
Puxei-te pela mão. A mão soltou-se do teu corpo.
Coloquei-a no lugar do coração; com as unhas
construí um fecho novo para o colar de pérolas;
vendi a pele e voltei a encher o frigorífico.
Alguém se sentou à mesa. Tinha o teu nome gravado;
um rosto sem marcas, irreconhecível,
aguardava a mão capaz de lhe levar coisas à boca.
Coisas de alimento às coisas do corpo. Como esta mão a bombear-te
o coração do lado errado do peito.

Inês Fonseca Santos, "As Coisas" (Abysmo, 2012).

quinta-feira, maio 03, 2012

A menina do mar

A ideia que fazemos deste caso é provavelmente a ideia que temos do mundo. Depende das nossas miragens e desencantos, de medos e fascínios. Ainda que tudo isso coexista muitas vezes numa mesma empresa: onde cresce o perigo cresce também aquilo que salva, escreveu um poeta alemão que morreu louco.

Pedro Mexia, O Mundo dos Vivos (Tinta da China, 2012).