domingo, abril 29, 2012

Columbano

A mulher atravessa duas faixas, aperta a mala entre o ombro e o braço, encosta o livro ao peito (mão esquerda) e sobe para o separador central. Baixa os óculos escuros e continua pela calçada branca, pouco usada, estreita. Contorna os postes das luzes, passos lentos. Pára. Há poucos carros do outro lado, mas não atravessa. O semáforo abre. É o meio da manhã, a hora leve. Quando a estrada se esvazia, desce para o alcatrão. Está numa pequena avenida, consegue ver que há quarteirões de estrada vazia. Baixa o livro do peito, pensa porque o trouxe, habituou-se a usar os papéis como desculpas ou acessórios, cigarros fumados nas traseiras de uma festa em que nada está a acontecer. Os cigarros e os livros como pretexto para conversas. Nunca devia ter começado a fumar, mas gosta de ler. O braço pendurado junto do corpo, a terminar no livro. Brinca com a postura, deixa o braço esticar-se para trás. Imagina que é vista, talvez sobre o ombro (esquerdo). Continua. Aproxima-se da linha tracejada que separa as duas faixas, repara que tem volume, parece mais depositada do que pintada. Deve ser fresca e segue-a como se houvesse aí alguma ordem. Sente o sabor a pasta de dentes. Sem entender muito bem porquê, pára. Fica espantada com as copas das árvores, de um verde infinito. Tonta, pensa. Continua para a direita, alcança o outro passeio. Entra na pastelaria. Sobe os óculos escuros com dois dedos da mão esquerda, os mais pequenos. Fica em silêncio enquanto uma senhora treme e recolhe o troco, o balcão de vidro demasiado alto para tanta idade, ela e o empregado como que a respeitar uma solenidade improvisada. Pede um café. Cheio. Pousa o livro. O empregado mete o pires e colher em cima do balcão de vidro, que para ela tem a altura certa. Brinca com o pacote de açúcar. Empurra todos os grão para uma ponta. Rasga. Verte e mexe. Bebe e paga. Obrigado e bom dia. Agarra o livro. Não há troco para recolher. Sai. Brinca com a ideia de fumar um cigarro no meio do alcatrão. Provavelmente esqueceu-se do isqueiro. Esquece os óculos. Fecha os olhos.

terça-feira, abril 17, 2012

The perpetual animal obits

“For a long time he stood gazing at the owl, who dozed on its perch. A thousand thoughts came into his mind, thoughts about the war, about the days when owls had fallen from the sky; he remembered how in his childhood it had been discovered that species upon species had become extinct and how the ‘papes had reported it each day - foxes one morning, badgers the next, until people had stopped reading the perpetual animal obits.”

Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep?

domingo, abril 01, 2012

É sempre bom ter a certeza de alguma coisa mesmo que de uma coisa tão inútil como esta

"o acto mais cruel acaba por encontrar sempre uma justificação, o mais insignificante também, uma mania de compreendermos tudo, de evitarmos, assustados, o mistério que a morte encerra, o último mistério, os homens que encontro nas áreas de serviços há muito que não têm mistérios, adivinho-lhes as respostas às perguntas que lhes faço, há quantos anos anda na estrada, gostam de perguntas que lhes permitam fazer contas, na primeira viagem tinha vinte e três anos, ora já tenho cinquenta e dois, portanto, ou então vão pelo ano, comecei a trabalhar em mil novecentos, outros respondem sem hesitar, há dezassete anos e dois meses, é sempre bom ter a certeza de alguma coisa mesmo que de uma coisa tão inútil como esta, outra pergunta de que estes homens costumam gostar, quantos quilómetros, por exemplo, o que encontrei na semana passada, milhares e milhares, um escudo por cada quilómetro e estava milionário, um cêntimo, que já não existem escudos, cêntimos ou escudos tanto faz, tanto custam a ganhar uns como os outros, e o anterior, não sei se o da outra semana, se a estrada fosse sempre a subir já tinha chegado ao céu, tinha a ideia que era sensível, contou-me que chorava quando passava pelas florestas ardidas, na verdade as almas sensíveis maçam-me bastante, claro que não deixo que percebam, felizmente que a maioria não é assim, de qualquer forma são todos semelhantes na forma de se aproximarem, primeiro o hálito, depois as mãos, como que por descuido, escolhem quase sempre as coxas, quando me tocam assusto-me sempre, já nem eu sei se a fingir se de verdade"

Dulce Maria Cardoso, Os Meus Sentimentos (Asa, 2005).