terça-feira, outubro 25, 2011

O fascínio pelo sublime

Essa comoção não esconde um enorme fascínio, que precisa de ser disfarçado com pudicas exclamações de horror. E esse fascínio - que é o fascínio pelo sublime - tem por base o kitsch espectacular do qual ficamos reféns. Não são as fotografias e os registos em vídeo que são difundidos, editados, sublinhados, musicados, legendados, repetidos, de modo a exercer uma ditadura emocional. O músico alemão Karlheinz Stockhausen, logo a seguir ao colapso do World Trade Center, disse que se tratava da maior obra de arte total. Foram declarações muito inconvenientes, que lhe valeram o cancelamento de muitos concertos. Mas estas palavras de Stockhausen era afinal o pronúncio de uma estetização irresponsável que viria a seguir, ao nível das revistas de moda. O resultado é o que se vê. Se Flaubert voltasse para rescrever o seu "Dictionnaire des idées reçues", diria na entrada sobre o 11 de setembro: "Deste dia, dizer sempre 'o dia em que...'"

António Guerreiro, Ao Pé da Letra (Atual, 17/09/2011).

domingo, outubro 23, 2011

ou com madeixas

e não tenho motivos para não acreditar no rapaz, três casamentos, três divórcios, experiência, a chuva abrandar e eu feito um pinto, se calhar esqueceste-te, se calhar não pensaste mais nisso, nem o teu nome sei, para ser sincero não me lembro muito bem como és, altura média, acho eu, cabelo castanho, acho eu, ou com madeixas, não seria capaz de esclarecer, quem me garante que já não te cruzaste comigo, enquanto eu somava os sete homens carecas, sem te lembrares de como sou igualmente, quem não me garante que não estavas à espera que eu sorrisse para me falares e, como não sorri, decidiste, desiludida
- Espera outra pessoa, vou-me embora


António Lobo Antunes, O encontro

sexta-feira, outubro 21, 2011

com seus excessos, sua roupa e zelo.

Cada palavra
contém seu sentido dentro
com seus excessos
sua roupa e zelo.
Exemplo
nua a palavra sono
para ser em si
seja lida gato
com a noite toda
de que é seu pelo.


Carlos Nóbrega, Breviário.

terça-feira, outubro 18, 2011

Nada mais

E se algum dia alguém te disser que de nada se arrepende na vida, estás perante uma de duas coisas: uma mentira ou uma tragédia. Erra, levanta-te e da próxima vez erra de uma forma mais elegante.

sábado, outubro 15, 2011

Madrigal

Herdei uma floresta obscura, onde raramente vou. Porém, há-de chegar o  dia em que os mortos e os vivos  trocam os seus lugares. Então, a floresta  põe-se em movimento. Nós não existimos sem esperança. Os maiores crimes ficam por esclarecer, apesar da mobilização de tantos polícias. Da mesma maneira, há algures, na nossa vida, um grande amor que fica por esclarecer.
Herdei uma floresta obscura, porém, hoje vou  à outra floresta, que é clara. Tudo está vivo, tudo canta, serpenteia, abana e rasteja. É Primavera , o ar é robusto. Fiz os meus exames na universidade do esquecimento, tenho as mãos vazias como uma camisa num cordão de estender roupa.


Tomas Tranströmer, traduzido por Luís Costa.

Julgando cabelos e dedos magros compridos

Lisboa a largar-se ao céu em braços e cabelos
que poderiam também ser estrelas,
poderiam ser casas caídas em ruas cujo nome não sei,
poderiam ser nesse mesmo instante
uma palavra nunca dita a tempo
ou os dedos que se perderam em afectos
numa pele sem destino aparente
e dir-te-ia
‘meu amor’
julgando cabelos e dedos magros compridos
que afinal estrelas e um reflexo incrível sobre o rio,
Lisboa submersa largando-se em tons azuis,
dir-te-ia todas as mentiras,
todas as que se conjugassem numa só noite
e num só corpo.


Joao Silveira, Dever/Haver.

domingo, outubro 09, 2011

Porventura abusivamente, a vida real.

Desde criança, tive a tendência para crear um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como d'aquilo a que chamamos, por ventura abusivamente, a vida real.

Fernando Pessoa, Escritos sobre Génio e Loucura, em carta a Casais Monteiro.