sábado, outubro 20, 2012

O quarto

Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.

Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.


Como se Desenha uma Casa (Assírio & Alvim, 2011).

Manuel António Pina, 1943-2012.

quarta-feira, outubro 17, 2012

Every night it's straight and narrow



Filmore Jive.
Pavement, Crooked Rain, Crooked Rain (Matador, 1994).

segunda-feira, outubro 15, 2012

Pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória

Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a falar contigo, a viver contigo, a morrer contigo. Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar.


Jorge Roque, Canção da Vida (Averno, 2012).

via José Mário Silva, o Bibliotecário de Babel

quinta-feira, outubro 11, 2012

Rock and roll can never die.



Hey Hey, My My.
Neil Young, Rust Never Sleeps (Reprise, 1979).

segunda-feira, outubro 08, 2012

Adeus Professor

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

Lágrima de Preta, António Gedeão.

Nuno Grande, 1932 - 2012.

sexta-feira, outubro 05, 2012

O país da não-inscrição

Significa isto que a vida portuguesa não comporta verdadeira tragédia. Se a morte nela não se inscreve, se não há morte trágica, nenhum outro acontecimento conseguirá realmente produzir sentido. Porque a morte, como acontecimento irremediável e necessariamente trágico (ontologicamente trágico, como des-inscrição radical de uma existência na vida), deve inscrever-se na vida para que esta se torne possível e faça sentido para os vivos.


José Gil; Portugal Hoje: o Medo de Existir (Relógio D'Água, 2004).