domingo, abril 01, 2012

É sempre bom ter a certeza de alguma coisa mesmo que de uma coisa tão inútil como esta

"o acto mais cruel acaba por encontrar sempre uma justificação, o mais insignificante também, uma mania de compreendermos tudo, de evitarmos, assustados, o mistério que a morte encerra, o último mistério, os homens que encontro nas áreas de serviços há muito que não têm mistérios, adivinho-lhes as respostas às perguntas que lhes faço, há quantos anos anda na estrada, gostam de perguntas que lhes permitam fazer contas, na primeira viagem tinha vinte e três anos, ora já tenho cinquenta e dois, portanto, ou então vão pelo ano, comecei a trabalhar em mil novecentos, outros respondem sem hesitar, há dezassete anos e dois meses, é sempre bom ter a certeza de alguma coisa mesmo que de uma coisa tão inútil como esta, outra pergunta de que estes homens costumam gostar, quantos quilómetros, por exemplo, o que encontrei na semana passada, milhares e milhares, um escudo por cada quilómetro e estava milionário, um cêntimo, que já não existem escudos, cêntimos ou escudos tanto faz, tanto custam a ganhar uns como os outros, e o anterior, não sei se o da outra semana, se a estrada fosse sempre a subir já tinha chegado ao céu, tinha a ideia que era sensível, contou-me que chorava quando passava pelas florestas ardidas, na verdade as almas sensíveis maçam-me bastante, claro que não deixo que percebam, felizmente que a maioria não é assim, de qualquer forma são todos semelhantes na forma de se aproximarem, primeiro o hálito, depois as mãos, como que por descuido, escolhem quase sempre as coxas, quando me tocam assusto-me sempre, já nem eu sei se a fingir se de verdade"

Dulce Maria Cardoso, Os Meus Sentimentos (Asa, 2005).

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