Dois textos que escrevi não sei bem porquê, em dois bocados, nos intervalos de outras coisas talvez, quase de certeza, mais importantes. Acho que é bem capaz de ter saído uma xaropada de série b, mas mais vale enfiar aqui do que na gaveta.
31 fachadas
Talvez hoje não seja o dia certo para chorar. Apanhei o metro e fui tirar fotos a fachadas para aquele trabalho da faculdade, mas esqueci-me de esvaziar o cartão de memória antes de sair de casa, o que é um drama tecnológico. Tragédia urbana. Não queria apagar nenhuma, por isso comprei uma máquina descartável de 32 fotos, daquelas mesmo manhosas. Assim, se saírem todas uma merda, posso fazer disso um manifesto. “A destruição do fim pelo meio”, soa a arquitectura de fachadas moderna, sensível e em contacto com a degradação urbanística que assalta o nosso centro histórico. Mas hoje não é o dia certo para chorar.
Também tirei fotos a uns putos que estavam na Trindade a comer gelados. Um tempo de caca, o céu todo cinzento, guarda-chuvas debaixo dos braços e os putos ali sentados a comer gelados, ralados com tudo menos com o mundo que ficava fora daqueles sundaes de chocolate (ou de caramelo? um pelo menos havia ser). O mais gordito estava a contar piadas muito porcas, acho que falava alto de propósito, só para chocar as pessoas que passavam. Um erro do inocente, já ninguém se incomoda nas nossas cidades. E os outros riam, deslizavam uns para cima dos outros. Mas de certeza que a foto também vai ficar uma porcaria, como as das fachadas, não havia luz. Mas eu estava lá, eu vi, hoje não é o dia certo para chorar.
Finalmente começou a chover, os putos ficaram até acabar o gelado, rasparam o fundo com a colher de plástico e depois correram por ali abaixo.Havia um comboio que não se importa muito com a chuva em S. Bento, e putos têm sempre onde estar àquela hora, a qualquer hora. Acho que não caíram, não escorregaram no chão molhado pela chuva, afinal aquele não era o dia certo para chorar.
Ideias novas (sobre coisas velhas)
Talvez eu fosse mais bonita se te largasse o braço, se fugisse, se tu fosses para o mundo experimentar o que é isso de ser livre e não ter ninguém para amar. Talvez aí (e só por estares sozinho) tu ainda me achasses diferente, interessante, talvez ainda achasses piada à forma como risco os guardanapos enquanto espero pelo café.
É que a solidão tem dessas coisas. Ou pensavas que ser livre e não ter ninguém para amar era um estado de graça alimentado pela possibilidade imaginária, mas teoricamente possível, de potencialmente te apaixonares pelo mundo todo (ou por quem queres, o que é quase a mesma coisa). Não. Isso de ser livre e não ter ninguém para amar é para um tipo de corajosos sobre os quais tu apenas soubeste pelos livros que a tua avó te lia enquanto a tua mãma trabalhava mais do que devia para poder ter o orgulho de ser uma competente mãe solteira. (E depois, quando chegava a casa, quando pensava que estavas a dormir, ela chorava, e foi assim que tu soubeste que jamais, alguma vez na vida estarias sozinho, sem ninguém).
E pensavas tu que agora não estavas sozinho, mas apenas livre. Sabes meu querido, não há diferença. Nesse dia, depois de eu te largar o braço, tu vais sentir que o mundo balança. Talvez porque quem largou fui eu, talvez porque há uma diferença entre mergulhar e ser empurrado e tu sabes. Ias voltar para os teus amigos da faculdade, mais os seus jantares, viagens à neve, dinheiro dos papás, conversas vazias sobre coisas supostamente inteligentes como política, economia e spreads, o ocasional jogo de squash, uma queca arrancada a ferros numa qualquer discoteca da moda, se é que isso ainda existe. E depois? Sempre que visses uma merda de um guardanapo sujo ias lembrar-te de mim, talvez naquele café ranhoso onde vais tomar a tua meia de leite todas as manhãs antes de ires para o escritório.
Infelizmente, meu cabrão, o braço que fugiu foi o teu. Meteste a mão ao bolso e desapareceste. E depois vi-te no outro dia, a sair de uma loja na baixa, parecias feliz, estavas a falar ao telemóvel com aquela voz de quem tem bem mais para mostrar do que um rabo jeitoso, estavas mais magro, parecias uns dez anos mais novo do que eu.
Mas eu nunca vi a minha mãe a chorar. Na semana em que me explicaste o que era isso de ter um prazo de validade, troquei de carro, mudei de sítio o sofá da sala e continuei a riscar guardanapos. No outro dia, o João – qualquer dia falo-te dele – pegou na tua foto e perguntou, Quem é este? E só me deu vontade de rir. Porque guardo a tua foto? Tu é que te esqueceste de a levar.