terça-feira, março 13, 2012

Se isto é uma casa

Se isto é uma casa, mataram-nos o cão. O jardim está vazio e as beatas de uma noite ainda lá estão de manhã, quando vou para o carro. Se isto é uma casa, desligaram-nos o frigorífico. A sala está fria e as almofadas olham-nos com um ar inquisidor, mas se nos sentássemos não nos abraçavam. Se isto é uma casa, a torneira pinga. O corredor não tem os nossos retratos e tudo parece mais estreito, abrimos os braços e as costas das mãos tocam o estuque (ficamos ali como que à espera que a parede se encolha). Se isto é uma casa, não encontro os meus livros nas prateleiras. As gavetas estão vazias e aquele papel que me lembrava sabonetes enrolou-se no fundo, lembra-me agora as coisas que inventava como brinquedos na minha infância, na sala da minha avó que tinha alcatifa castanha e uma porta para a rua que nunca usávamos. Havia uma fotografia do casamento da minha madrinha em que as pessoas estavam a sair por lá, via-se que era uma ocasião importante. Nas casas da minha infância entrava-se e saía-se pela porta da cozinha. Em casa dos meus pais ainda se nota um pouco isso, a porta da cozinha é a porta da casa. Em casa da minha avó que tinha na sala alcatifa castanha e uma porta para a rua que nunca usávamos, a porta da cozinha dava para uma espécie de largo. Em frente, o Toyota Corola branco do meu avô e a casa de uma vizinha que eu achava engraçada, porque para se entrar (pela cozinha) descia-se uns degraus que agora me parecem pouco mais do que uma decoração. Para a esquerda dos degraus da vizinha havia a casa de banho, um barraco a que chamaríamos hoje arrumos, o tanque, o galinheiro e depois um muro, que saltando estamos em casa da Tia Gracinda (a Tia Gracinda é mãe do rapaz de cabelo comprido que se via na foto a casar-se com a minha madrinha e a usar a porta da sala da minha avó. Via-se que era um casamento entre gente da terra). À porta de casa da minha outra avó havia um pátio (não lhe chamo largo, como o outro, porque este era só nosso) e um pouco de terreno, com um diospireiro e algumas vinhas (pensei sempre no diospireiro como propriedade da minha avó e na vinha como propriedade do meu avô. No norte as coisas ainda são um pouco assim). Nas casas da minha infância não havia animais de estimação. A avó do diospireiro tinha uns gatos e criava coelhos. Os gatos eram seus no sentido em que somos donos do ar que ocupa as nossas varandas nos apartamentos das cidades e os coelhos, depois de brincarmos com eles às ninhadas inteiras nos carrinhos de mão, acabávamos por comer. Não havia cães que nos pudessem matar. Os jardins não eram particularmente bonitos e ninguém fumava. Os frigoríficos nunca se desligaram e, além das funções que cumprem nas outras casas, o de casa da minha avó que tinha na sala alcatifa castanha e uma porta para a rua que nunca usávamos, servia para o meu tio Quim meter em cima a carteira e as chaves do carro quando vinha lá almoçar. Convém lembrar que o frigorifico estava à porta da cozinha e a cozinha era a porta da casa. Mas como dizia, as torneiras por vezes pingavam, particularmente as dos pátios e outros sítios exteriores, onde de alguma forma isso parecia importar menos as pessoas. Não havia retratos nos corredores até porque havia muito pouca coisa nas paredes (as paredes da minha infância eram como que telas para quais se olhava de baixo. Uma pessoa aprende a ter respeito por uma tela em branco de muitas maneiras, esta é apenas uma delas). Quando abria os braços, as minhas mãos não tocavam o estuque e, se era por ser mais pequeno, na altura não o sabia (não esperava nada das paredes nessa altura, além de respeitar a sua semelhança com telas). Não havia muitos livros nas prateleiras, mas à medida que os fui trazendo fizeram-me sempre perceber que, se havia muita coisa na minha vida que era um privilégio, esse era um direito muito querido. Nunca se discutiu o preço de um livro. O preço de um livro era o preço de um livro e era o fim do assunto. Quando os livros já não cabiam nessas prateleiras de onde vim, disseram-me sem esconder o orgulho que fizesse o favor de trazer mais e mais, porque se fosse preciso viveríamos e dormiríamos em cima deles, mesmo que só para mim não fossem em grande parte um mistério. Nunca precisamos de viver ou dormir em cima deles. Houve sempre mais prateleiras e por isso habituei-me a essa noção de que algumas coisas são essenciais e indiscutíveis, de que os livros podem ser uma forma de amor. Não falo de amor pelos livros, embora esse também exista, falo dos livros como demonstração de amor. Falo de uma entrega que desejava a superação, não a todo o custo, mas com toda a naturalidade. Se há algo que posso agradecer às casas em que cresci é essa noção de que há coisas essenciais e indiscutíveis, sobre as quais, se for preciso, vamos viver ou dormir.

1 comentário:

Manel Pessoa disse...

Já tinha saudades de te ler. Nada que ninguém possa escrever pode superar isto. Continua a alimentar a beleza das palavras, sem alimento elas morrem e eu também morro um pouco. Está magistral