terça-feira, março 13, 2012

E é desse Nietzsche que eu gosto

Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar a cabeça de Karenine e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece-me outra imagem: a de Nietzsche a sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a vergastar um cavalo. Chega-se ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça-se à sua cabeça e desata a chorar.
A cena passava-se em 1889 e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras, foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou. Mas, na minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de um profundo significado. Nietzsche foi pedir perdão por Descartes ao cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio com a humanidade) começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao cavalo.
E é desse Nietzsche que eu gosto, tal como gosto da Tereza que tem ao colo a cabeça de um cão mortalmente doente e que a afaga. Ponho-os ao lado um do outro: tanto um como outro se afastam da estrada em que a humanidade, "dona e senhora da natureza", prossegue a sua marcha sempre em frente.

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser (1983; Tradução de Joana Varela editada pelo D. Quixote em 2011, porque lamentavelmente não sei ler o original em francês. Talvez um dia.).

2 comentários:

Manel Pessoa disse...

Já não visitava este sítio há demasiado tempo. Acabei há umas semanas o livro citado. Li-o em francês por preguiça minha, desconhecia que fosse a língua original, pensava que era em checo. O número de folhas dobradas no canto inferior esquerdo são inumeráveis e roça o absurdo. Essa citação estava sublinhada e deixo-ta aqui, não por pedantismo, mas porque fala à humanidade de uma maneira que o meu intelecto apenas grosseiramente conseguiria reproduzir.

Aqui fica: "J'ai toujours devant les yeux Tereza assise sur une souche, elle caresse la tête de Karénine et songe à la faillite de l'humanité. En même temps, une autre image m'apparaît: Nietzsche sort d'un hôtel de Turin. Il aperçoit devant lui un cheval et un cocher qui le frappe à coups de fouet. Nietzche s'approche du cheval, lui prend l'encolure entre les bras sous les yeux du cocher et il éclate en sanglots.

Ça se passait en 1889 et Nietzsche s'était déjà éloigné, lui aussi, des hommes. Autrement dit: c'est précisément à ce moment-là que s'est déclaré sa maladie mentale. Mais selon moi, c'est bien là ce qui donne à son geste sa profonde signification. Nietzsche était venu demander au cheval pardon pour Descartes. Sa folie (donc son divorce d'avec l'humanité) commence à l'instant où il pleure sur le cheval.

Et c'est ce Nietzsche-là que j'aime, de même que j'aime Tereza, qui caresse sur ses genoux la tête d'un chien mortellement malade. Je les vois tous deux côte à côte: ils s'écartent tous les deux de la route où l'humanité, "maître et possesseur de la nature", poursuit sa marche."

Tiago Costa disse...

É para isto que servem os amigos. Que maravilha. :)