quarta-feira, março 30, 2011

Na ilha por vezes habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.


José Saramago. Provavelmente alegria, Caminho, 1985.

domingo, março 20, 2011

(desculpa)

beijo, estava guardada para ti desde sempre, guardada para ti, Ernesto, seria incapaz de me imaginar com outro homem, continuo à tua espera, sabias, que arrumes o carro, subas, me garantas
- A minha menina
enquanto verificas se trazes a caixinha dos comprimidos no bolso, pode parecer-te parvo mas adorava acariciar a caixinha, não te rias de mim, ou antes não levantes na minha direcção o teu sorriso pobre e a tua desculpa
- A ferrugem
mesmo que fosses um parafuso todo escuro adorava-te, guardada para ti desde sempre, a comer qualquer coisa sozinha, a folhear uma revista, a fechar a televisão, a deitar-me, guardada para ti, Ernesto, podes ter a certeza, desde o princípio do mundo.


António Lobo Antunes.

quinta-feira, março 17, 2011

Fluorescent lights

If one looks closely, it becomes apparent that there is no way out of the bar area, as the three walls of the counter form a triangle that traps the attendant. It is also notable that the diner has no visible door leading to the outside, which illustrates the idea of confinement and entrapment. Hopper denied that he had intended to communicate this in Nighthawks, but he admitted that "unconsciously, probably, I was painting the loneliness of a large city."

Hoje, terça-feira

Paguei um café a um taxista, era preciso destrocar dinheiro. Soube que faz 56 anos e teve um tio médico, que morreu há umas semanas. Disse-me que eu era novo de mais, perguntou-me se estudava ali. "Você parece mais novo". A ex-mulher teve uma meningite, desde então ficou muito impressionado. "Impressionado com um café para destrocar dinheiro?". Agradeceu, sorriu. "Devia ser eu a oferecer, faço anos".

quarta-feira, março 16, 2011

Tenho de começar a escrever

There are only three things to be done with a woman. You can love her, suffer for her, or turn her into literature.

Lawrence Durrell via YMFY.

terça-feira, março 15, 2011

"Born 1960 in Saigon, Vietnam"


Ms. Le is a superb technician, and her pictures are dramatic and gorgeous, the way combat photography often is. They are also apt documents of a war that, some people argue, is based on a fiction and, at least as originally scripted, staged for the press.

A fotografia de An-My Lê, via This Long Century.

o Outono visto pela janela

na casa onde nasci havia sons e cheiros meus
as pessoas que os tinham emprestavam-mos à memória
e eu incluía-os como amigos íntimos
nesta não tem gente
ou se tem não têm cheiro
nem som porque eu não me lembro
gastei toda a memória nas pessoas antigas
e o espaço para as novas é um T1 que fica muito para além do T
onde eu estou sem visitas
fechado à medida de não deixar entrar
preciso do que já foi como do próximo ar para me lembrar que foi bom
eu já fui bom
agora não sei
mas já fui
juro que fui
e quero gastar as únicas energias a fazer manutenção às memórias
p’ra que nenhuma se perca
era pena
é que até a gente que me fez por dentro como a um cofre já não existe
e quero mantê-los ligados à máquina para sempre
e a máquina sou eu
e para sempre sou eu
anda
aconchega-te no mofo do T1
finge que és de antigamente para te dar os beijinhos de quando era pequenino
cheiras à minha avó
à roupa no estendal
à canção do fim dos bonecos
ao banho que está a ficar frio
ao grito do granizo do dia mais longo em que a casa esteve para cair
tu cheiras e sabes ao dia em que a casa esteve para cair
que foi no mesmo dia em que resistiu
como se estivesse ali desde o início dos tempos
e os tivesse começado para eu os acabar
acabar
acabar
acaba comigo que me falha a lembrança
e restas-me como a folha que esteve para cair
e que só não caiu porque o mundo acabou antes do Outono


"a verdade dói e pode estar errada". João Negreiros. Saída de Emergência, 2009.

agora não sei

segunda-feira, março 14, 2011

Notas de uma demolição

Como um acúfeno espesso, quase líquido, quase cego.

sexta-feira, março 11, 2011

Rather Ripped




Nota mental:
suspender o recurso aos Sonic Youth.

Pink Steam, originalmente de Rather Ripped (Geffen / Interscope, 2006).

quinta-feira, março 10, 2011

Há quem passe toda a vida a tentar

But you asked your questions, dear boy. Let's answer the simplest one, and perhaps it will answer all the rest. Why did we take your artwork? Why did we do that? You said an interesting thing earlier, Tommy. When you were discussing this with Marie-Claude. You said it was because your art would reveal what you were like. What you were like inside. That's what you said, wasn't it? Well, you weren't far wrong about that. We took away your art because we thought it would reveal your souls. Or to put it more finely, we did it to prove you had souls at all.

Never Let Me Go. Kazuo Ishiguro, 2005.

domingo, março 06, 2011

Animals

Have you forgotten what we were like then
when we were still first rate
and the day came fat with an apple in its mouth

it’s no use worrying about Time
but we did have a few tricks up our sleeves
and turned some sharp corners

the whole pasture looked like our meal
we didn’t need speedometers
we could manage cocktails out of ice and water

i wouldn’t want to be faster
or greener than now if you were with me O you
were the best of all my days



Frank O'Hara

Não vale a pena mentir.

Trapped in your hot car.



All I Need, Radiohead. In Rainbows (2007).