Quando abrires o armário tem cuidado
mais que versos falhados cartões melancolia
pode sair de repente o que não esperas
aquela cujo sol de um outro tempo
quando olha para ti ainda te mata.
Por isso tem cuidado: não abras as gavetas
talvez Deus esteja escondido
ao lado do retrato da primeira comunhão.
Não abras: pode soltar-se
o espírito
podem sair os mortos todos
as bruxas o diabo as cartas o destino
e aquela parte da tua vida que não cabe
não cabe em nenhum verso.
E se o bafo soprar?
Não abras
não abras as gavetas.
Pode sair a tua guerra
os aerogramas
as cartas escritas da cadeia
o amor o tempo as emboscadas
as longas noites de interrogatório
e também os duzentos metros livres
uma tarde de glória na Praia das Maçãs.
Este no pódio és tu.
Não queiras ver.
O que passou passou e não passou.
Deixa ficar o sol fechado no armário
o sol e a vida
não só poemas cadernos e retratos
mas também lâminas um pincel de barba
um pente
os pequenos nadas do teu quotidiano
antes do salto.
Tão inúteis agora.
Ninguém regressa à vida interrompida
mesmo que por dentro do armário
bata por vezes um coração.
Tem cuidado ao abri-lo.
Pode sair o que nunca imaginaste
um pedaço de Deus em papéis velhos
uma foto esmaecida
um amor rasgado
sabe-se lá o quê.
Alguém que não conheces
alguém que não sabes quem
alguém que aponta o teu retrato
e de repente diz: Ninguém.
de Manuel Alegre. Livro do Português Errante, Dom Quixote, 2001.
Isto andava por aqui perdido... hoje talvez encontre.
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