sexta-feira, outubro 07, 2005

O paciente apreensivo

Uma cidade onde os cães nunca são vadios por terem medo da rua. À noite podes vê-los saltarem para o rio, alinhados na margem, os focinhos baixos e as caudas paradas. Só umas horas depois de serem abandonados. Preferem a morte, o pelo molhado e frio enquanto se esquecem que nos filmes os cães sabem sempre nadar e se deixam afogar. Preferem a morte, teem medo da rua. É por isso que não há cães nesta cidade, os gatos são donos dos caixotes do lixo. Esquivos, há muito aprenderam que a noite é só uma desculpa para os outros se deixarem engolir pela escuridão que tudo vai justificando. Os gatos gostam de ser vadios, preferem a rua - têm medo da água. Todas as noites vão para junto da ponte enquanto os caes se suicidam. Invejam o vento no pelo, o silêncio que antecede a queda na água e depois o estrondo discreto. Invejam a misteriosa descoberta da escuridão da água, o preto que nem eles penetram - têm medo da água. E uma vez na vida, só por um instante - o último - os cães sao mais misteriosos do que os gatos.

(Entretanto, nas varandas, os cães esquecidos, não abandonados, quase amados, uivam. Eles nunca serão mais misteriosos que os gatos. Eles morrem com o pelo limpo, a familia a chorar e o veterinario a dizer "era tao velhinho, foi um bom cao...". Destes, os gatos riem enquanto se equilibram num qualquer muro estreito - daqueles que separam os quintais dos vizinhos que nunca se conhecem - e dizem:
"no dia em que te abandonarem, no dia em que essa trela te esquecer como há muito o coração já o fez, serás livre. vais ter medo, mas sentirás o vento no teu pelo enquanto a água te abraça. nesse dia, eu, gato vadio sem medo da cidade, vou invejarte. terás em ti o maior segredo do mundo. assustado, molhado e por fim morto terás em ti uma noite que nem eu penetro. cão, às vezes vale a pena ter medo.")

"Quem nos deus asas para andar de rastos?

Quem nos deus olhos para ver os astros

Sem nos dar braços para os alcançar?"

Florbela Espanca

12 comentários:

Sergio Figueiredo disse...

do deprimido que sabe que morre o gato sente inveja...porque sabe ser só esse o momento em que se vence o instinto de viver... é a única altura em que o ente se transcende a si próprio...a morte é desejável, daí ser temida...

Sergio Figueiredo disse...

mais tarde, depois de controlada a crise histérica que levaría ao sofrimento dos conhecidos, a vida passa a ter outro propósito...a vingança crua que um dia irá passar pelas mãos...

Sergio Figueiredo disse...

com o tempo, esbate-se...mas não desparece...

Tiago Costa disse...

sérgio... vingança? este post era só a minha timida tentativa de construir uma fabula...

escrevi a pensar em conceitos como liberdade, e nunca em morte ou vida. foi mm por isso que escolhi os gatos e os caes,pq os bichinhos tornam tudo um pouco mais simples.

e n acho nada q a morte seja desejavel. é temida, penso eu, pq alguns de nós n sabem muito bem o que está do outro lado, e tememos que possa ser muito bem o nada para onde nos empurra a nossa racionalização...

os meus gatos só tinham inveja dos caes pq estes conheciam um lugar que eles n... ou seja, à noite, normalmente eram os gatos que viam tudo, mas, agora, só os caes sabem o que há debaixo de água. (é uma metáfora tao infantil q até me envergonho com o lugar comum :) como sugeri, os caes sabem nadar. e nenhum deles queria morrer. na verdade, n sei muito bem se na minha "fábula" algum morre... gosto de pensar que não. só se deixam levar pela corrente, poe o focinho fora de água uns metros abaixo e riem baixinho dos gatos siderados na ponte. o cao é um bicho que gosta de correr.

quando muito, os unicos que estão "mortos" sao os que uivam na varanda.

peace, love and understanding bro!

Sergio Figueiredo disse...

...multiplas interpretações...

Tiago Costa disse...

não é uma "interpretação" porque o texto é meu.

Sergio Figueiredo disse...

...sim, eu percebi, o que não significa que seja uma interpretação. é a interpretação original, intendida, mas continua a ser o que é...

...e não te preocupes com a natureza das minhas opiniões...não são mais do que manifestações retorcidas do outro eu que a esquizofrenia permite (porque todos nós apresentamos diversas personalidades)...tanto mais que, felizmente, não virás a ser eventual alvo das minhas acções...

...um abraço...

Anónimo disse...

Parabéns amigo, muito bem escrito (pelo menos na minha modesta e estrangeira opiniao), gostei muito do texto e invejo-te o talento (de uma maneira resignada e nao violenta). :)

Abraço

Inês disse...

Parabens indeed. Tão bom que nem dá para acreditar que é teu... ;) Gostei muito. Beijo.

Tiago Costa disse...

"Tão bom que nem dá para acreditar que é teu..."

liga as luzes então :)

bruno maia disse...

" Entretanto, nas varandas, os cães esquecidos, não abandonados, quase amados, uivam. Eles nunca serão mais misteriosos que os gatos. Eles morrem com o pelo limpo, a familia a chorar e o veterinario a dizer "era tao velhinho, foi um bom cao...". "
" vais ter medo, mas sentirás o vento no teu pelo enquanto a água te abraça. "

Com tudo o que me leva a retroceder e não o faço, encontro no caminho, frágeis esboços de compreensão... E essa compreensão é tua, está aqui, é palpável e visível, sente-se o cheiro na pele...!
Ainda que por um instante, adoptas-te o meu....

Conceito intrínseco de liberdade!

Artur G. disse...

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