Uma cidade onde os cães nunca são vadios por terem medo da rua. À noite podes vê-los saltarem para o rio, alinhados na margem, os focinhos baixos e as caudas paradas. Só umas horas depois de serem abandonados. Preferem a morte, o pelo molhado e frio enquanto se esquecem que nos filmes os cães sabem sempre nadar e se deixam afogar. Preferem a morte, teem medo da rua. É por isso que não há cães nesta cidade, os gatos são donos dos caixotes do lixo. Esquivos, há muito aprenderam que a noite é só uma desculpa para os outros se deixarem engolir pela escuridão que tudo vai justificando. Os gatos gostam de ser vadios, preferem a rua - têm medo da água. Todas as noites vão para junto da ponte enquanto os caes se suicidam. Invejam o vento no pelo, o silêncio que antecede a queda na água e depois o estrondo discreto. Invejam a misteriosa descoberta da escuridão da água, o preto que nem eles penetram - têm medo da água. E uma vez na vida, só por um instante - o último - os cães sao mais misteriosos do que os gatos.
(Entretanto, nas varandas, os cães esquecidos, não abandonados, quase amados, uivam. Eles nunca serão mais misteriosos que os gatos. Eles morrem com o pelo limpo, a familia a chorar e o veterinario a dizer "era tao velhinho, foi um bom cao...". Destes, os gatos riem enquanto se equilibram num qualquer muro estreito - daqueles que separam os quintais dos vizinhos que nunca se conhecem - e dizem:
"no dia em que te abandonarem, no dia em que essa trela te esquecer como há muito o coração já o fez, serás livre. vais ter medo, mas sentirás o vento no teu pelo enquanto a água te abraça. nesse dia, eu, gato vadio sem medo da cidade, vou invejarte. terás em ti o maior segredo do mundo. assustado, molhado e por fim morto terás em ti uma noite que nem eu penetro. cão, às vezes vale a pena ter medo.")
"Quem nos deus asas para andar de rastos?
Quem nos deus olhos para ver os astros
Sem nos dar braços para os alcançar?"
Florbela Espanca
12 comentários:
do deprimido que sabe que morre o gato sente inveja...porque sabe ser só esse o momento em que se vence o instinto de viver... é a única altura em que o ente se transcende a si próprio...a morte é desejável, daí ser temida...
mais tarde, depois de controlada a crise histérica que levaría ao sofrimento dos conhecidos, a vida passa a ter outro propósito...a vingança crua que um dia irá passar pelas mãos...
com o tempo, esbate-se...mas não desparece...
sérgio... vingança? este post era só a minha timida tentativa de construir uma fabula...
escrevi a pensar em conceitos como liberdade, e nunca em morte ou vida. foi mm por isso que escolhi os gatos e os caes,pq os bichinhos tornam tudo um pouco mais simples.
e n acho nada q a morte seja desejavel. é temida, penso eu, pq alguns de nós n sabem muito bem o que está do outro lado, e tememos que possa ser muito bem o nada para onde nos empurra a nossa racionalização...
os meus gatos só tinham inveja dos caes pq estes conheciam um lugar que eles n... ou seja, à noite, normalmente eram os gatos que viam tudo, mas, agora, só os caes sabem o que há debaixo de água. (é uma metáfora tao infantil q até me envergonho com o lugar comum :) como sugeri, os caes sabem nadar. e nenhum deles queria morrer. na verdade, n sei muito bem se na minha "fábula" algum morre... gosto de pensar que não. só se deixam levar pela corrente, poe o focinho fora de água uns metros abaixo e riem baixinho dos gatos siderados na ponte. o cao é um bicho que gosta de correr.
quando muito, os unicos que estão "mortos" sao os que uivam na varanda.
peace, love and understanding bro!
...multiplas interpretações...
não é uma "interpretação" porque o texto é meu.
...sim, eu percebi, o que não significa que seja uma interpretação. é a interpretação original, intendida, mas continua a ser o que é...
...e não te preocupes com a natureza das minhas opiniões...não são mais do que manifestações retorcidas do outro eu que a esquizofrenia permite (porque todos nós apresentamos diversas personalidades)...tanto mais que, felizmente, não virás a ser eventual alvo das minhas acções...
...um abraço...
Parabéns amigo, muito bem escrito (pelo menos na minha modesta e estrangeira opiniao), gostei muito do texto e invejo-te o talento (de uma maneira resignada e nao violenta). :)
Abraço
Parabens indeed. Tão bom que nem dá para acreditar que é teu... ;) Gostei muito. Beijo.
"Tão bom que nem dá para acreditar que é teu..."
liga as luzes então :)
" Entretanto, nas varandas, os cães esquecidos, não abandonados, quase amados, uivam. Eles nunca serão mais misteriosos que os gatos. Eles morrem com o pelo limpo, a familia a chorar e o veterinario a dizer "era tao velhinho, foi um bom cao...". "
" vais ter medo, mas sentirás o vento no teu pelo enquanto a água te abraça. "
Com tudo o que me leva a retroceder e não o faço, encontro no caminho, frágeis esboços de compreensão... E essa compreensão é tua, está aqui, é palpável e visível, sente-se o cheiro na pele...!
Ainda que por um instante, adoptas-te o meu....
Conceito intrínseco de liberdade!
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