Pode apagar a luz: já não preciso dela. Quando penso na Isabel cesso de ter receio do escuro, uma claridade ambarina reveste os objectos da serenidade cúmplice das manhãs de julho, que se me afiguraram sempre disporem diante de mim, com o seu sol infantil, os materiais necessários para construir algo de inefavelmente agradável que eu não lograria jamais elucidar. A Isabel que substituía aos meus sonhos paralisados o seu pragmatismo docemente implacável, consertavas as fissuras da minha existência com o rápido arame de duas ou três decisões de que a simplicidade me assombrava, e depois, de súbito menina, se deitava sobre mim, me segurava a cara com as mãos, e me pedia Deixa-me beijar-te, numa vozinha minúscula cuja súplica me transtornava. Acho que a perdi como perco tudo, que a sacudi de mim com o meu humor variável, as minhas cóleras inesperadas, as minhas exigências absurdas, esta angustiada sede de ternura que repele o afecto, e permanece a latejar, dorida, no mudo apelo cheio de espinhos de uma hostilidade sem razão. E lembro-me, comovido e suspenso, da casa do Algarve rodeada de ralos e figueiras, do céu morno da noite tingido pelo halo longínquo do mar, da cal das paredes quase fosforescente no escuro, e da violenta e informulada paixão das minhas carícias que pareciam deter-se, irresolutas, a centímetros do rosto dela, e se dissolviam por fim num afago indefinido.
António Lobo Antunes, "Os Cus de Judas" (1979).
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