domingo, janeiro 22, 2012

Desde que ainda haja coisas de que eu tenha a certeza

"Estacionamos no princípio do cais e os contentores perdem-se de vista ao longo da margem do rio. O Sr. Belchior diz que os contentores são as sobras do império, não deixa de ter piada que estejam a apodrecer no mesmo sítio onde o império começou, alguma coisa isto quer dizer, alguma coisa devemos aprender com isto, tudo na vida tem os seus porquês. (...)

Acho que nunca mais vou ser capaz de pensar e sentir uma coisa de cada vez. Com o tempo devo habituar-me e deixar de me incomodar com isso. Não posso evitar que umas coisas tragam outras ou façam perder outras. Não deve ter mal. E também não deve fazer mal. Como não faz mal eu não saber o que aconteceu ao pai na prisão, aos demónios da mãe, à Silvana ou ao tio Zé. Nada disso tem mal desde que ainda haja coisas de que eu tenha a certeza.

Um avião risca o céu a direito. Silencioso. Como um giz preguiçoso nas mãos invisíveis de deus. Noutro tempo ter-lhe-ia respondido daqui de baixo. Talvez ainda responda. Noutro tempo ter-lhe-ia escrito, talvez ainda escreva, em letras bem grandes a todo o comprimento do terraço para que não possa deixar de ver-me, eu estive aqui.
Eu estive aqui."

Dulce Maria Cardoso, O Retorno (Tinta da China, 2011).

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