- Deita aqui
e o meu corpo se transformou num túnel de mudez em que martelavam os ecos do meu sangue, ao passo que em nossa casa não existiam gritos nem lágrimas, os silêncios resumiam-se aos silêncios sem estranheza de quando a gente dorme e podia perceber-se um pássaro nas copas, o atrito da água ou um estalo de móvel, principalmente no verão, com os armários e as arcas a chamarem por mim
- Paula Paula
de maneira que quando a minha madrinha me disse
- O teu pai vem visitar-te amanhã
não senti nada porque não sabia o que a palavra pai queria dizer, fiquei apenas curiosa já que nenhum homem nos entrara em casa com a sua tosse, as suas zangas, os seus cheiros, a imaginar um homem na nossa sala, na nossa cozinha, no quintal das traseiras, um homem grande demais para o espaço em que eu vivia por os homens me parecerem desajeitados e enormes, por aos nove ou dez anos os homens se afigurarem um vendaval confuso de ordens e de pêlos, não fiquei contente por ter um pai, não fiquei com vontade de conhecê-lo por medo dos seus jornais e dos seus berros, fiquei curiosa a supor o que o meu pai faria na nossa casa, que roupa usava, que poltrona escolhia, se passava a mão na minha bochecha e se a mão na minha bochecha me aleijava, de que falaria com a minha madrinha, se me levava com ele para longe de Alcácer e de repente receei que me levasse e principiei a chorar e a ver as cegonhas fazerem o ninho na chaminé do notário, a primeira cegonha deitada no ninho e a segunda imóvel, não a vogar, imóvel, a minha madrinha a pousar o abano do fogão
- O que foi Paula?
António Lobo Antunes (Dom Quixote, 1996).
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